sexta-feira, março 30, 2007

Uma presença sempre embaraçante


Apresentar publicamente uma posição sobre um tema, qualquer que ela e ele sejam, é hoje totalmente tolerado. Do aquecimento global ao cancro da próstata, do neo-realismo à sexualidade juvenil, do TGV ao trânsito intestinal, a nossa sociedade desinibida participa empenhada em todos os debates. Há discussões, lutas e contradições, mas nunca constrangimentos, limites, bloqueios.

Excepto, claro, na religião. Num tempo livre e aberto que se orgulha de discutir tudo, essa é a única matéria delicada. Há um racismo contra a crença. Considerado tema pessoal (o único!) é escondido na intimidade de cada um. Há, mas não se pode ver. Devassamos a privacidade até na televisão mas, mesmo entre os crentes, um texto público sobre a Fé (como este) gera sempre embaraço. Para que servem as convicções, senão para manifestar? Fala- -se de tudo, menos do essencial.

Pior, evangelização e missionação são hoje proselitismo e intolerância. Propagandeiam-se frigoríficos, clubes, dietas, políticas, teorias, mas não a doutrina cristã. É comum, até em sacerdotes, disfarçar os elementos religiosos atrás de chavões. Não se fala de Deus e Cristo, Céu e Inferno, Igreja e hierarquia. Prefere-se fazer apostolado com Gandhi e a ONU, dar catequese com O Principezinho. Ser cristão, afinal, é só ser honesto, solidário e ajudar os pobres, como qualquer sindicato ou ONG.

Esta desconfiança latente contra a Igreja, típica da sociedade europeia, mostrou já ser resistente até a mudanças radicais. Há 50 anos os cristãos assumiram que tinham de mudar para o mundo novo. O Concílio Vaticano II quis voltar ao essencial da mensagem, dispondo-se a alterar na forma o que fosse preciso. O resultado foi a maior transformação organizacional que o mundo alguma vez viu. Mudou-se muito mais do que podia esperar um observador imparcial nos anos 1950. Liturgia, organização, métodos, práticas tudo foi passado pelo crivo da crítica e reformado com vigor. A liturgia abandonou o latim, o Papa percorreu o mundo, lançou-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. Houve exageros e debates, abandonos e clivagens, mas hoje qualquer observador imparcial tem de admitir que a Igreja, mantendo o essencial, disponibilizou-se a transformar quase tudo o resto.

Será que os críticos abrandaram a severidade? Está o mundo mais atraído ou, até, mais imparcial face à Igreja?

A mudança foi preciosa, mas não facilitou a missão. Pelo contrário, a incompreensão, afastamento e hostilidade parecem ter aumentado. A recente publicação das conclusões do sínodo sobre a liturgia eucarística (Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis), um dos temas mais reformados, mostrou-o bem. O documento segue na via da inovação, mas os jornais não perceberam e disseram banalidades piores que nunca. Que os envergonhariam em qualquer outro tema.

O problema não é de hoje. Ele foi recorrente nos dois mil anos de História. No Concílio Vaticano II como no de Trento ou de Niceia, na acção de Bento XVI como de São Bento, São Paulo, Santo Atanásio, São Francisco ou Santo Inácio, a Igreja teve sempre de reinventar nos meios para propor a mensagem de que é portadora. E nunca foi aceite pelo mundo. Mas manteve-se uma presença desafiante no mundo.

A dificuldade é identificar os movimentos proféticos, não de épocas passadas, mas do momento. Como os contemporâneos de São Bruno ou São Domingos, é difícil reconhecer aqueles que as gerações futuras celebrarão. Um caso concreto ajudar a compreender. Acaba de ser publicado entre nós o livro de Luigi Giussani O Caminho para a Verdade é Uma Experiência (Tenacitas, Coimbra, 2007). Trata-se de uma recolha dos textos seminais de um dos movimentos eclesiais mais dinâmicos da actualidade, a Fraternidade Comunhão e Libertação. O Papa recebeu essa organização no passado sábado e no próximo dia 30 Lisboa será visitada pelo responsável mundial do Movimento, padre Julián Carrón, sucessor directo de Giussani, que falará no cinema São Jorge.

Esta é a via actual. Mesmo antes do Concílio, os movimentos de Igreja multiplicaram-se, do Opus Dei aos Focolares, dos carismáticos à Legião de Maria. Como há séculos com monges e frades, é aqui que fervilha a novidade do Evangelho. O mundo continua embaraçado perante o dinamismo dos Apóstolos, mas isso nunca embaraça a Igreja de Jesus Cristo. Ela tem de anunciar a Boa Nova de forma adequada ao tempo, mas sem procurar agradar ao mundo. "Importa mais obedecer a Deus que aos homens" (Act 5, 29).

João César das Neves
Professor universitário